Uma voz suave e empostada reconhece meu sotaque indiano ao me ouvir falar Urdu, um dos idiomas oficiais do meu país e do vizinho Paquistão. Essa percepção assustadora, feita por Diep Saaeda, paquistanesa e personagem central desta reportagem, é só um dos estigmas existentes na história destes dois países, um antigo conto de divisão, amizade e guerra, já enraizado por suas populações. Apesar do passado compartilhado, com idiomas, música, cultura, comida e muito mais em comum, renasce no presente uma esperança futura de paz e cordialidade entre os povos – ainda que, inicialmente, seja apenas virtual.

 

                      Saaeda abriu nossa conversa falando sobre suas várias visitas à Índia e fazendo campanha para que existam travessias mais fáceis entre as fronteiras, com relaxamento de visto. O diálogo era contextualizado por mim com histórias sobre minha avó, que veio de Lahore, no Paquistão, para se estabelecer na Índia.

 

                      Ao falarmos do nacionalismo e o crescente extremismo que tem ganhado força no Paquistão, ela conta que sua cidade, Punjab, ainda testemunha os reflexos da cisão da Índia Britânica, ocorrida em 1947, que fez nascer na população um sentimento de ódio na relação Índia-Paquistão, além de fomentar a opressão de gênero e o fundamentalismo religioso. Por isso, Diep Saaeda, com a ajuda de amigos e jovens voluntários, decidiu fundar o projeto “Peace Mobile Cinema” (Cinema Móvel pela Paz, na tradução do inglês), iniciativa que combate o extremismo religioso na região de Punjab pelo entretenimento.

 

                     Traçando uma clara distinção entre religião e extremismo religioso, Diep observou que a primeira foi usada apenas como uma ferramenta por extremistas para atingir objetivos egoístas, em vez de ajudar o indivíduo a se aproximar de sua crença A parte infeliz foi, no entanto, a estratégia de lavagem cerebral aplicada em jovens, especialmente os de áreas rurais, historicamente afetadas pelo menor nível educacional e traumas provocados por problemas políticos. Tais fatos facilitaram o recrutamento em favor de causas fundamentalistas.

 

                     Por isso, uma forma eficaz de combater esse processo poderia ser o cinema, que é envolvente, informativo, além de ser próximo da juventude. Assim, o projeto “Peace Mobile Cinema” foi iniciado para levar mensagens de paz contra o extremismo religioso com a ajuda de filmes exibidos por uma van colorida que vai de vila em vila.

 

Figura 1: Van do projeto “Peace Mobile Cinema” que foi pintada por voluntários. Fonte: Diep.

                      Lahore, uma das maiores e mais movimentadas cidades do Paquistão, possui mais de 200 salas de cinema, número que deve aumentar com a reativação de outros locais. Uma realidade pouco usual para países islâmicos, que possui uma relação conturbada com a indústria cinematográfica – a Arábia Saudita, por exemplo, só encerrou há pouco tempo a proibição do funcionamento de cinemas comerciais que exibiam filmes não-islâmicos (tipos de produções exibidas frequentemente na maioria das cidades paquistanesas). Isso se deve ao amor por Bollywood, a indústria cinematográfica indiana que frequentemente une Índia e Paquistão.

 

                   Sabendo disto, Saaeda aproveita para exibir produções originais, como a animação Burqa Avenger, que foca na necessidade de educação para mulheres e luta contra o uso forçado da burca, que, ao ser empregada desta maneira, apaga a identidade do gênero feminino, e filmes de Bollywood como a comédia infanto-juvenil Chillar Party, estrelada por crianças.

 

Figura 2: Cena do desenho “Burqa Avenger”. A animação é uma criação própria e leva a mensagem de empoderamento das mulheres através da educação

                    Com desenhos e shows específicos para diferentes idades, as histórias usam nomes e histórias locais para atrair mais atenção e se conectar com o público jovem. Exemplo é o documentário Ummedi Seher, seu mais recente trabalho, que narra a história emocionante de um menino que cai na armadilha da radicalização, mas encontra uma maneira de combatê-la pela da educação e com a ajuda de amigos.

 

                     Diep me disse orgulhosamente que sua iniciativa chegou a estudantes de mais de 415 escolas do Paquistão, que resultou em um documentário que mostra o envolvimento de seu público e suas reações. A resposta dos jovens em todos os shows e exibições tem sido extremamente positiva. Segundo ela, para muitas crianças é a primeira vez em que assistem a um filme na vida – e tudo isso acontece sem muito apoio do governo paquistanês, que está em falta com o projeto. Segundo a fundadora do projeto, a ajuda do governo impulsionaria novas ações a aldeias além de Punjab, expandindo, desta forma, sua campanha pela paz.

 

Figure 3: Picture depicting one of the screening’s audience. Picture shared by Diep.

 

                        Embora seja fácil levantar fundos para uma causa religiosa no Paquistão, uma iniciativa como esta que promete a “construção da paz” parece pouco conhecida e vaga para populações locais, que muitas vezes hesitam em doar dinheiro. No entanto, aqueles já engajados trabalham ao máximo para garantir a continuidade do projeto.

 

                        Embora a situação em todo o mundo, em termos de crimes de ódio e ascensão de organizações extremistas, esteja se deteriorando, iniciativas como a Peace Mobile Cinema têm propagado. Diep trabalha por medidas que focam na construção pela paz desde 1995, incluindo ações nas fronteiras entre os dois países, como a marcha da paz entre Delhi e Multan. Tais atitudes são uma esperança para as populações jovens. Por isso, o Words Heal the World endossa esta campanha, no intuito de não deixar em vão os esforços de Diep e sua equipe para desradicalizar a juventude com a ajuda do cinema.

 

                       Para saber mais sobre o trabalho de Diep Saaeda e da iniciativa “Peace Mobile Cinema”, acesse o website https://peaceandsecularstudies.org/. Se quiser entrar em contato com a equipe, utilize a página criada no Facebook: https://www.facebook.com/IPSS.pk/

 

Por Annapurna Menon, estudante de mestrado em Relações Internacionais da Universidade de Westminster.

 

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